Gostaria de dividir com vocês texto que li da
escritora Martha Medeiros. O título é Tristeza Permitida. Ele retrata a
realidade da sociedade na atualidade: Vivemos atravessados por informações simultâneas,
diferentes sensações, variados estilos de vida, crenças e um modo de vida tão
imediatista que o fato de se sentir triste não se enquadra neste contexto
turbulento. A tristeza é um sentimento que assim como a alegria pode nos
contagiar e isso independe de dia e vontade. A alegria por vezes nos toma conta
e nem sempre temos um motivo específico para tal sensação. Em dias de sol,
nublados, de festa ou domingos “comuns”, podemos ser acometidos por sentimentos
que nos levem ao isolamento, a reflexão, a dedicação a uma atividade
individual. Estar triste não é ser triste! “ Estar triste não é estar
deprimido... Depressão é coisa muito séria, contínua e complexa...”
Segue o texto:
“Se eu disser pra você que hoje acordei
triste, que foi difícil sair da cama, mesmo sabendo que o sol estava se
exibindo lá fora e o céu convidava para a farra de viver, mesmo sabendo que
havia muitas providências a tomar, acordei triste e tive preguiça de cumprir os
rituais que faço sem nem prestar atenção no que estou sentindo, como tomar
banho, colocar uma roupa, ir pro computador, sair pra compras e reuniões – se
eu disser que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi
um dia como os outros, que não encontrei energia nem pra sentir culpa pela
minha letargia, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive vontade de
nada, você vai reagir como?
Você vai dizer “te anima” e me recomendar um
antidepressivo, ou vai dizer que tem gente vivendo coisas muito mais graves do
que eu (mesmo desconhecendo a razão da minha tristeza), vai dizer pra eu
colocar uma roupa leve, ouvir uma música revigorante e voltar a ser aquela que
sempre fui, velha de guerra.
Você vai fazer isso porque gosta de mim, mas
também porque é mais um que não tolera a tristeza: nem a minha, nem a sua, nem
a de ninguém. Tristeza é considerada uma anomalia do humor, uma doença
contagiosa, que é melhor eliminar desde o primeiro sintoma. Não sorriu hoje?
Medicamento. Sentiu uma vontade de chorar à toa? Gravíssimo, telefone já para o
seu psiquiatra.
A verdade é que eu não acordei triste hoje,
nem mesmo com uma suave melancolia, está tudo normal. Mas quando fico triste,
também está tudo normal. Porque ficar triste é comum, é um sentimento tão
legítimo quanto a alegria, é um registro de nossa sensibilidade, que ora
gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é estar
deprimido.
Depressão é coisa muito séria, contínua e
complexa. Estar triste é estar atento a si próprio, é estar desapontado com
alguém, com vários ou consigo mesmo, é estar um pouco cansado de certas
repetições, é descobrir-se frágil num dia qualquer, sem uma razão aparente – as
razões têm essa mania de serem discretas.
“Eu não sei o que meu corpo abriga/ nestas
noites quentes de verão/ e não me importa que mil raios partam/ qualquer
sentido vago da razão/ eu ando tão down…” Lembra da música? Cazuza ainda dizia,
lá no meio dos versos, que pega mal sofrer. Pois é, pega mal. Melhor sair pra
balada, melhor forçar um sorriso, melhor dizer que está tudo bem, melhor
desamarrar a cara. “Não quero te ver triste assim”, sussurrava Roberto Carlos
em meio a outra música. Todos cantam a tristeza, mas poucos a enfrentam de
fato. Os esforços não são para compreendê-la, e sim para disfarçá-la,
sufocá-la, ela que, humilde, só quer usufruir do seu direito de existir, de
assegurar seu espaço nesta sociedade que exalta apenas o oba-oba e a
verborragia, e que desconfia de quem está calado demais. Claro que é melhor ser
alegre que ser triste (agora é Vinícius), mas melhor mesmo é ninguém privar
você de sentir o que for. Em tempo: na maioria das vezes, é a gente mesmo que
não se permite estar alguns degraus abaixo da euforia.
Tem dias que não estamos pra samba, pra rock,
pra hip-hop, e nem pra isso devemos buscar pílulas mágicas para camuflar nossa
introspecção, nem aceitar convites para festas em que nada temos para brindar.
Que nos deixem quietos, que quietude é armazenamento de força e sabedoria,
daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta, anunciando o fim de mais uma
dor – até que venha a próxima, normais que somos.
Martha Medeiros é jornalista
e escritora brasileira.
A crônica transcrita acima, faz parte do Livro “Doidas e Santas”
A crônica transcrita acima, faz parte do Livro “Doidas e Santas”
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